Num dia como hoje, 28 de junho, só que de 1841 estreava mundialmente o ballet Giselle. Por isso, o post de hoje é todinho dedicado a ele! Vamos falar de enredo, contexto da sua criação, versões do ballet, curiosidades, e o que a crítica disse sobre o ballet quando ele estreou. Até hoje é o ballet romântico mais famoso da história! Por isso, não podemos deixar esse dia em branco!
1. Enredo
O ballet Giselle é um ballet romântico de 2 atos, com libreto de Vernoy de Saint-Georges, Theóphile Gautier e Jean Corali, música de Adolphe Adam, e coreografia de Jean Corali e Jules Perrot. Os papéis principais são Giselle e Albrecht, que na ocasião de sua estreia mundial (28 de junho de 1841), foram dançados por Carlotta Grisi e Lucien Petipá, o irmão mais velho de Marius Petipá.
O ballet se ambienta na Alemanha medieval – importante dizer que já li em alguns lugares que o ballet se passa na França, e essa confusão é comum, porque a região da Alsácia-Lorena foi território de bastante conflito entre esses 2 países, já pertencendo ora a um, ora a outro, a depender do período histórico. Então, vai depender do ano em que se passava a história para sabermos se se trata da Alemanha ou da França. A região foi objeto da Primeira Guerra-Mundial, bem como da Guerra Franco-Prussiana anteriormente, conflito que já mencionamos quando falamos do Ballet Coppélia.
E como Tutu da Ju também é cultura, eu estive lá em Julho de 2019, quando fiz minha viagem da Europa. Mais precisamente eu estive em Colmar e Estrasburgo, cidades que integram a região, que hoje, no momento em que eu estou escrevendo esse post, pertence à França. Para quem quiser ler mais sobre, deixo o link do Wikipedia, para esse texto não ficar gigante. Mas, olhando as casinhas ao fundo da minha foto, dá para ter uma ideia no que inspirou Pierre Ciceri a fazer o cenário do primeiro ato do ballet Giselle. As casinhas da região são puro charme e parecem casas de boneca! No ballet, as choupanas têm formato semelhante. Também é importante citar que a região é conhecida por seus vinhos, que também vai fazer parte da história do ballet Giselle.
Sobre o libreto, Giselle é baseado no livro de Heinrich Heine, “De l’Allemangne”, que conta uma história de uma lenda alemã sobre espíritos de novas que morreram antes do casamento e atraíram seus noivos para a floresta para dançarem até a morte. Giselle vai contar exatamente essa história: a personagem principal vai se apaixonar por Albrecht e vai descobrir que ele já era comprometido com Bathilde. Isso vai fazer seu coração se despedaçar, levando a jovem à morte. Ela, após morrer e virar uma “Willi” (uma espécie de noiva fantasma) vai fazer Albrecht dançar até a sua morte. Vamos falar com mais detalhes essa história.
O primeiro ato do ballet se inicia num recanto do Rio Reno na época das vindimas (colheita da uva). Nesta cena há choupanas, parreiras e um castelo feudal. Neste momento entra Hilarion e espia ao seu redor, como se procurasse alguém. Olha com ternura para a choupana de Giselle, e com ódio para a habitação vizinha. A porta desta se abre misteriosamente e Albrecht, disfarçado de camponês e dizendo se chamar Loys, sai em companhia de seu escudeiro Wilfrid. Este parece insistir com o amo para que renuncie a algum projeto, mas, sendo despedido, faz um profundo cumprimento e se retira.
Fica a observação que nem todas as companhias incluem o personagem de Wilfrid. Afinal de contas, ele não é tão essencial à história.
O coiteiro, estranhando que um jovem tão esplendidamente vestido preste obediência a um camponês, enche-se de suspeitas. Albrecht dirige-se à cabana onde mora Giselle, por quem está apaixonado, e que não o ama com menos ardor. bate à porta e a donzela corre a seu encontro, dizendo-lhe que teve um mau sonho no qual uma dama nobre, trajando um rico vestido, estava prestes a se casar com Loys, paramentado como príncipe. O jovem tenta tranquilizá-la o melhor que pode, mas Giselle, ainda inquieta, interroga um malmequer a respeito da felicidade do namorado. O oráculo é desfavorável, mas Loys, tomando-lhe as flores das mãos, repete a prova, que desta vez é satisfatória. Radiantes, os apaixonados exprimem seu prazer por meio de uma dança.
Hilarion, enraivecido por ver Giselle nos braços de Loys, censura-a por seu procedimento, mas ela lhe dá as costas. Loys aconselha-o a não importunar Giselle, pois do contrário terá de se arrepender, e a isso Hilarion responde com um gesto ameaçador.
Chegam agora algumas aldeãs carregando cestos e prontas para a colheita das uvas. Giselle, no entanto, sugere-lhes que seria muito mais agradável dançarem. Ela própria começa, e inspiradas por seu exemplo, as moças depositam no chão os seus cestos e a imitam. Berthe, mãe de Giselle, receia por sua filha e acautela-a dizendo-lhe: “A tua dança acabará levando-te ao túmulo e mesmo lá não encontrarás repouso, pois se tornará uma Wili”. Giselle, todavia, não lhe presta atenção; dança é sua paixão e a ela pretende entregar-se totalmente.
Longínquos sons de trompas anunciam a aproximação de uma caçada. Loys, alarmado com a ideia de quem possa aparecer, conduz apressadamente as raparigas a seus trabalhos nas vinhas. Giselle e a mãe entram em casa. Hilarion, a sós, aproveita a oportunidade para entrar na casa de Loys.
Chegam os caçadores chefiados pelo Príncipe de Curlândia e sua filha, Bathilde, a qual, fatigada do exercício, veio em busca de um pequeno repouso na casa de Giselle. Esta, com tímida e encantadora graça, apressa-se para preparar ao ar livre uma mesa rústica para servir algo a seus nobres hóspedes. Aproxima-se de Bathilde com pisadas felinas e, num êxtase de ingênua admiração, aventura-se a tocar-lhe o rico veludo do vestido. A princesa, atraída pela modéstia de Giselle, coloca a sua corrente de ouro em torno do pescoço da camponesa e pretende tomá-la a seu serviço. Giselle agradece-lhe imensamente, mas replica que nada mais deseja no mundo além de dançar e ser amada por Loys.
O príncipe e a filha retiram-se para o interior da casa para descansar, após aquele ter informado a seus caçadores que um toque de sua trompa será o sinal de regresso. Enquanto Giselle procura ver se Loys já está de volta, Hilarion escapole da cabana do rapaz carregando uma esplêndida espada e um manto senhorial. Exultante pelo que veio a saber, aguarda apenas um momento oportuno para denunciar o rival. Loys retorna e se sente aliviado por ver que a caçada já acabou. Giselle se atira em seus braços, e nesse mesmo instante uma alegre música anuncia a volta dos camponeses que estavam colhendo as uvas (vidimadores). A moça, eleita de comum acordo Rainha da Festa, e coroada com folhas de parra e levada em um cortejo triunfal. A colheita das uvas é festejada com animadas danças.
A alegria está no auge quando aparece Hilarion, que traz a espada e o manto encontrados na casa de Loys. Louco de ciúmes, denuncia o namorado de Giselle como impostor, um nobre disfarçado. Quando a camponesa responde que ele está sonhando, apresenta a espada e o manto. Loys corre ao encontro do monteiro que agarra a trompa do príncipe e toca-a como um possesso. Os caçadores acorrem e o príncipe deixa a cabana em companhia da princesa, espantados de verem Albrecht com aqueles trajes.
Giselle, reconhecendo em Bathilde a bela dama de seu sonho, não pode duvidar mais de sua desgraça e aqui dá início a famosíssima “cena da loucura” desse ballet. Seu coração se enche de dor (* há versões que falam que a jovem já tinha um coração fraco), a cabeça pende, os pés estremecem e começam a se mexer. Ela repete o trecho que dançou para o namorado. Coloca a mão de Albrecht sobre o coração e depois repele-o com horror. Então, segura-lhe a espada e tenta enterrá-la em seu próprio peito. Ele desvia a arma, mas já era tarde. Em sua derradeira agonia, a jovem moça busca alívio numa dança dolorida e frenética. De repente, ela pára, dá alguns passos cambaleantes e cai morta nos braços de Bathilde e Berthe, para o desespero de Albrecht e o mais amargo remorso de Hilarion. Os aldeões reúnem-se em torno da bela jovem, já sem vida, em diferentes atitudes de lástima e tristeza.
Aqui se encerra o primeiro ato do ballet e dá início ao segundo.
Este começa numa floresta às margens de uma lagoa. Nesse momento, se vê uma névoa azulada no palco. A lua no cenário denota que a noite chegou. Vemos também uma lápide coberta com flores do campo e uma cruz de mármore, com o nome de Giselle gravado nela.
De tempos em tempos, relâmpagos anunciam que uma tempestade se aproxima. Um grupo de caçadores, chefiados por Hilarion, entra à procura de refúgio. Hilarion amedronta os companheiros dizendo-lhes que aquele local é assombrado pelas Willis. Meia-noite soa à distância; das folhas compridas de relva e dos renques de caniços surgem fogos-fátuos. Assustados, os caçadores fogem.
Os juncos se entreabrem, exalando um pálido vapor que pouco a pouco se condensa e adquire a delgada forma de uma donzela. Com uma graça melancólica, ela brinca ao luar e depois, colhendo um ramo de rosmaninho, acena chamando as Willis, suas vassalas, que saem das plantas e das flores para tomar parte na dança. Myrtha, a Rainha das Willis, interrompe o baile fantástico e anuncia que naquela noite vão receber mais outra irmã.
Estende o cetro sobre a recém-aberta cova e dali se ergue uma forma rígida envolta numa mortalha que tomba e desaparece, e Giselle, ainda meio entorpecida, dá alguns passos vacilantes e presta homenagem à rainha. Colocam-lhe na testa uma estrela reluzente, e dos ombros brota um par de asas. Inspirada pelo luar de prata, ela salta de entusiasmo pela sua redenção.
Inclusive aqui é uma das cenas do ballet que mais comovem o público. As bailarinas cruzam o palco em filas fazendo arabesques no fondu. Nessa foto, foi quando eu dancei Giselle pela Petite Danse em 2008. Eu estou no fundo nesse momento. Foi a hora mais aplaudida do espetáculo.
Ouvem-se passos e as Willis se escondem atrás das árvores. É um bando de jovens alegres voltando para casa. As Willis tentam atraí-los ao interior do círculo mágico, porém, avisados por um sábio ancião, que conhece a lenda, os aldeões se escapam.
Mal partiram, e aparece Albrecht acompanhado por Wilfrid para visitar o túmulo da amada. Giselle não pode resistir a tão comovente quadro de profunda tristeza e voa para o seu lado. Ele deseja tomá-la nos seus braços, mas as Willis voltam. Nesse momento, há o pas de deux do segundo ato, em que é todo construído de forma que Albrecht tenta tocar Giselle, mas não consegue, já que agora sua amada é um espectro. Em muitas versões do ballet, esse personagem de Wilfrid nem é visto no segundo ato, assim como no primeiro.
Giselle teme por Albrecht, mas para a sua felicidade elas espreitam o desventurado Hilarion que, roído de remorsos, chegou àquele local. Num relance ele é rodeado, passado de mão em mão, forçado a tomar parte da dança e, aos rodopios, empurrado cada vez mais perto da água. Tonto e exausto, tropeça e projeta-se de cabeça na lagoa, onde se afoga. A música desse momento é muito forte e contagiante. A coreografia é impecável! Todas as Willis formam uma diagonal perfeita enquanto Hilarion vai ao encontro de sua morte.
Procurando outra diversão, uma das Willis dirige-se para Albrecht. A rainha ordena a Giselle que o enfeitice; suas súplicas a seu favor são rejeitadas e ela atrai o apaixonado à campa de onde saiu, e faz-lhe sinal para agarrar-se à cruz e nunca a abandonar.
Myrtha ordena agora a Giselle que dance os mais fascinantes passos. Albrecht, cada vez mais encantado, deixa a cruz protetora e encaminha-se para a amada. As outras Willis circundam os dois amantes e logo o jovem é vitimado por uma loucura funesta. Batem então 4 horas e a aurora começa a raiar. As Willis se esvaem e Giselle é puxada para o seu frio asilo. Albrecht toma-a nos braços e repousa sua delgada forma sobre o montículo florido que se abre, tragando-a.
O rapaz levanta-se, colhe algumas flores que preme aos lábios e cai desfalecido nos braços de Bathilde e Wilfrid, que têm estado a procurá-lo ansiosamente.
2. Contexto da criação
Anteriormente, a Académie Royal de La Musique, atual Ópera de Paris, já tinha vivido o êxtase do Ballet La Sylphide com Marie Taglioni em 1832. Esta foi uma grande estrela, que deixaria de dançar em 1847. A Ópera precisava de mais um grande ballet e de uma possível substituta para Taglioni. Com o sucesso do ballet Giselle, todos os objetivos estavam conquistados e Grisi é consagrada a mais nova estrela da Ópera de Paris. O papel de Giselle foi feito para ela pelo libretista Theóphile Gautier e coreografado por seu marido à época, Jules Perrot, que colaborou com Jean Coralli. Após Giselle inúmeros ballets vão ser feitos para ela e estrelados por ela. Por exemplo: La Esmeralda, La Peri, Le Diable à Quatre, Paquita, e tantos outros.
O sucesso da jovem Grisi, que contava com 22 anos, em Giselle foi tanto que Gautier, que já havia elogiado tanto as estrelas da época, Fanny Elssler e Marie Taglioni, apontou Grisi como “a versão feminina” de Auguste Vestris, o Deus da Dança. Gautier encontrou em Grisi a síntese do que admirava nas outras duas: a qualidade “lírica” da “Bailarina Cristã” Taglioni (uma bailarina etérea) e o fogo e o encantamento da “Bailarina Pagã” Elssler. Gautier caiu de amores pela bailarina italiana Carlotta Grisi, mas repito que ela já era casada com o coreógrafo Jules Perrot. Esse acontecimento foi um dos maiores escândalos da época no mundo do ballet. Isso causou tanto frisson que Perrot acabou retirando os seus créditos do programa na ocasião da estreia. Como Grisi já era casada, Gautier acabou casando com a irmã da bailarina, Ernesta Grisi. E, dizem, que na sua morte, Gautier sussurrou o nome de Carlotta.
Giselle foi o ápice da Era Romântica: os Deuses do Olimpo do Classicismo abandonavam os palcos, dando lugar a seres místicos, como as Sylphides e as Willis; entra a sapatilha de ponta; a iluminação à gás, os figurinos leves, contribuindo ainda mais para a exacerbação da figura feminina e para a construção do clima etéreo dos ballets da época. Giselle vai ser o primeiro ballet que todo o corpo de baile, além da Primeira Bailarina, vai dançar nas pontas. Em La Sylphide, isso caberia apenas à personagem principal (Marie Taglioni). O uso de tecnologias já começava a acontecer – para a época, tanto La Sylphide quanto Giselle, trouxeram inovações tecnológicas. Em Giselle, alçapões foram usados para dar a perfeita ilusão de que as Willis emergiam dos túmulos.
Giselle foi aos palcos pela primeira vez em 1841 e, na época, a Ópera de Paris ainda vivia seu auge. Gautier vai ser libretista de grandes ballets da época, como La Peri e Le Diable Amoureux, como já vimos antes.
Outra inovação de Giselle foi o tema da infidelidade, que até então era inédito (mas, conforme eu for fazendo outros posts de outros ballets, vocês vão ver que tantos outros também vão abordar esse tema), do conflito das classes sociais, que foi bastante audaciosa para a época, retratando a impossibilidade da união de uma camponesa com um nobre. Cumpre falar, que, mesmo dentro desses temas, a figura feminina é o centro de tudo. Estamos falando do Romantismo, época de bastante valorização da figura feminina, que outrora estava praticamente fora de cena. Durante 200 anos a predominância foi da figura masculina nos palcos. Mesmo os papéis femininos eram interpretados e dançados por homens travestidos de mulher. Já falamos disso aqui algumas vezes. Mas é bom relembrar para contextualizar.
Outro fato sobre o ballet é que pela primeira vez foi construído um ato totalmente oposto ao outro. No primeiro ato, temos um ar alegre, uma vivacidade, todos festejando a colheita das uvas. No segundo ato, temos um clima fúnebre, em que as Willis tomam conta da cena, sendo até mesmo um tanto quanto macabro. E isso é um verdadeiro desafio de técnica e interpretação para quem dança mesmo no corpo de baile. Inclusive, por causa dos dois atos serem tão opostos, tanto artística, quanto tecnicamente, que muitas bailarinas usam uma sapatilha de ponta para o primeiro ato, e uma segunda, mais macia, para que o segundo ato não perca o clima etéreo. E isso vale tanto para as solistas e a primeira bailarina, quanto o corpo de baile, que, no segundo ato, fica bastante tempo imóvel numa mesma posição.
Para o libreto, a inspiração veio da obra de Heinrich Heine “De l’Allemangne”, que conta a história das Willis, que eram jovens mortas por amor, antes de seu casamento, vagam pelas florestas e que têm sede de vingança. Vernoy de Saint-Georges deu a pitada a mais que Gautier precisava: as jovens morreriam para se tornarem Willis. Mas vamos desenvolver isso mais tarde.
3. Versões
- Nove meses após o estrondoso sucesso de Giselle na Ópera de Paris, o ballet foi apresentado pela primeira vez em Londres. O público londrino assistiu Giselle pela primeira vez em 12 de março de 1842 no Teatro de Sua Majestade, com Grisi no papel titular. A primeira produção londrina foi acessada pelo mestre de ballet Deshayes com a assistência de Perrot e a estreia foi outro tremendo sucesso. No entanto, devido à diferença do tamanho do Teatro de Sua Majestade para o da Ópera de Paris (esta última era maior e tinha mais profundidade), o ballet não poderia ser encenado na mesma escala pródiga da produção parisiense original. Num artigo para o Courrier de l’Europe, a Visconde de Malleville expressou seu desapontamento com a produção de Londres, afirmando que alguns números foram cortados – o Pas de Deux Camponês no primeiro ato foi omitido – e descartou uma encenação como “um fiasco inevitável”. Por mais acanhada que uma produção pode ter sido para alguns, no entanto, o entusiasmo que o novo ballet completo em Londres é inegável; foi até mesmo compartilhado pela Monarquia Britânica. Treze apresentações de Giselle, estrelando Grisi, foram realizadas em Londres e entre os que compareceram a duas apresentações estava a Rainha Vitória. Para um baile realizado no Palácio de Buckingham em abril, o compositor Jullien foi contratado para organizar uma quadrilha, um galope e uma valsa com base na partitura de Adam.
- Grisi voltou a Paris em abril de 1843 e o diretor do Teatro de Sua Majestade, Benjamin Lumley, planejava encenar Giselle novamente em Londres na temporada seguinte. No entanto, ele não conseguiu contratar Grisi para a temporada de 1843-44 e temia a ideia de omitir um ballet tão popular do repertório, de modo que teve que procurar em outro lugar outra bailarina para dançar a trágica camponesa. A bailarina que ele contratou com sucesso foi Fanny Elssler, que havia retornado recentemente à Europa após sua turnê pela América. Este contrato marcou não só o retorno de Giselle aos palcos londrinos, mas também a estreia de Elssler no papel. A apresentação de estreia de Elssler como Giselle ocorreu em 30 de março de 1843; isso marcou a ocasião em que outra grande bailarina da Era Romântica estreou no que é hoje o mais famoso Ballet Romântico. A representação de Elssler do papel foi muito diferente de Grisi e a reação ao seu desempenho foi mista. A principal razão para isso era porque, ao contrário de Grisi, os papéis de donzelas espirituais e sobrenaturais não eram o forte de Elssler, já que seus talentos e habilidades eram mais adequados para as heroínas mortais e terrenas. Portanto, sua performance no segundo ato faltou aquela graça espiritual e sobrenatural e elegância que o papel de Giselle exige, mas sua performance no primeiro ato foi muito mais forte. Todos concordaram que o que faltou a Elssler no segundo ato, ela compensou com o que trouxe para o primeiro ato. Elssler apresentou em Giselle oito vezes naquela temporada e ela e Grisi voltariam a Londres na temporada seguinte para inserir o papel novamente.
- Giselle chegou também à Rússia. Como muitos ballets parisienses, Giselle não durou em suas casas parisienses ou londrinas. A versão de Perrot e Coralli foi apresentada pela última vez na Opéra de Paris em 1868. E foi na Rússia que Giselle ganhou um lar permanente. Um ano após sua estreia mundial, o ballet foi encenado em São Petersburgo para o Ballet Imperial pelo Ballet Master Antione Titus em 30 de dezembro de 1842, especialmente para a primeira bailarina russa definitiva da era romântica, Elena Andreyanova. Cinco anos depois, Marius Petipá chegou a São Petersburgo, tendo sido nomeado Premier Danseur dos Teatros Imperiais, e estreou-se na produção de Tito no papel de Albrecht no dia 5 de dezembro de 1847, com Andreyanova no papel titular. No ano seguinte, Fanny Elssler chegou à Rússia e fez sua estreia na produção de Tito em 22 de outubro de 1848, com Marius Petipá como Albrecht. Desde antes de sua chegada à Rússia, Petipá estava muito familiarizado com Giselle; não apenas seu irmão Lucien se originou no papel de Albrecht, mas o próprio Petipa já havia dançado o papel em sua apresentação de estreia em Bordeaux em 1843 e novamente em 1844 em sua apresentação de estreia em Madrid. Seu conhecimento de Giselle provaria ser vital para o futuro e a preservação do ballet.
- Pouco depois da chegada de Elssler à capital russa imperial, Perrot chegou a São Petersburgo como o novo mestre de ballet dos teatros imperiais. Entre os ballets parisienses que ele e outros franceses criaram, Perrot encenou sua própria produção russa de Giselle e para essa encenação contou com a ajuda de Petipá. Perrot revisou como contribuições coreográficas de Coralli para o corpo de baile e, embora Petipá trabalhasse de acordo com as indicações de Perrot, ele também deu suas próprias criações independentes, especialmente a dança dos Willis no segundo ato. Enquanto uma encenação da produção estava em andamento, Fanny Elssler estava se mudando para Moscou na época e não estava disponível para mais compromissos em São Petersburgo; ela fez sua última apresentação na Rússia no inverno de 1850. Apropriadamente, como se revelou, a bailarina que dançaria Giselle na encenação russa de Perrot era a própria Giselle original, Carlotta Grisi, que chegou a São Petersburgo no outono de 1850 e não papel de Albrecht era Christian Johansson. A encenação russa de Giselle de Perrot estreou em 20 de outubro de 1850 no Imperial Teatro Bolshoi Kamenny. Essa nova encenação em São Petersburgo garantiria ainda mais a preservação de Giselle no repertório do ballet, mas após a saída de Perrot da Rússia, seria o renascimento de Petipá que se tornaria a versão definitiva do ballet do qual derivam todas as produções modernas.
- Petipá encenou seu primeiro renascimento de Giselle em 1884 para a Prima Ballerina Maria Gorshenkova. Para este renascimento, Ludwig Minkus compôs um novo pas de deux que Petipá adicionou ao primeiro ato de Gorshenkova. Esse pas de deux não encontrou um lar permanente no ballet, mas a música sobreviveu e ressurge de vez em quando quando usada nas galas de Giselle. Petipá também elaborou os toques que havia dado à encenação de Perrot em 1850, expandindo as danças em um elaborado Grand Pas des Wilis. Apesar da adição do novo pas de deux composta por Minkus, o primeiro ato parece ter permanecido intocado da versão Perrot-Coralli, enquanto o segundo ato foi expandido. O primeiro revival de Giselle por Petipá estreou em 17 de fevereiro de 1884. Ele reviveria o ballet novamente quatro vezes; seu segundo revival foi encenado em 1887 para a Prima Ballerina italiana Emma Bessone. Ele reviveu o ballet pela terceira vez em 1889 para Elena Cornalba (neste momento foi quando Petipá criou a variação de Giselle do Primeiro Ato como nós conhecemos hoje, mas vamos falar dessa variação mais adiante) e novamente em 1899 para Henriëtta Grimaldi. Em 1903, Petipá encenou seu último e mais importante revival da jovem Anna Pavlova, que estreou em 13 de maio de 1903 no Imperial Mariinsky Theatre. O próprio Petipá treinou Pavlova para o papel e, com seus saltos notáveis, abandono e emoção, Pavlova estabeleceu um novo padrão para Giselle. O idoso Petipá deve ter visto neste notável artista a personificação das bailarinas românticas que ele conheceu e admirou em sua juventude.
- Giselle era aparentemente o ballet favorito de Pavlova e ela seria uma das três grandes intérpretes do papel titular no início do século XX. Ela se apresentou pela primeira vez o ballet no oeste em Varsóvia em 1904. Em 1908 e 1909, uma trupe de bailarinos do Ballet Imperial, liderada por Pavlova, Nikolai Legat e Alexander Shiryaev incluiu Giselle em sua turnê pelos Estados Bálticos, Escandinávia e Alemanha. Pavlova dançou em Giselle com sua companhia diversas vezes em suas turnês globais em lugares como Viena, Estados Unidos, Londres, Chile e Argentina. Entre aqueles que viram Pavlova como Giselle estava Dame Alicia Markova, que mais tarde viria a se tornar outra grande Giselle por seus próprios méritos.
- Depois de Pavlova, a segunda grande intérprete da época foi Tamara Karsavina, que estreou como Giselle em Praga em 24 de abril de 1909. Karsavina fez sua estreia em São Petersburgo no papel em 8 de outubro de 1910, com Samuil Andrianov como Albrecht. Houve outras bailarinas do Ballet Imperial que tentaram o papel de Giselle na época, mas, ao contrário de Pavlova e Karsavina, não tiveram muito sucesso.
- Matilda Kschessinskaya fez sua estreia como Giselle em 1916 quando tinha 44 anos e foi um dos papéis que ela dançou na Rússia.
- Uma vez em São Petersburgo, uma das apresentações planejadas de Karsavina como Giselle foi dada a Agrippina Vaganova no último minuto, o que irritou Karsavina, já que o ballet era um de seus favoritos e ela considerava Vaganova inadequada para o papel. Para sua alegria, no entanto, Karsavina disse que a atuação de Vaganova foi um “desastre completo”.
- Dez anos após a estreia de Karsavina como Giselle, a terceira grande intérprete foi a Prima Ballerina Olga Spessivtseva, que muitos concordam foi a suprema Giselle do século XX. Spessivtseva foi ensinada e treinada para o papel de Nikolai Legat e fez sua estreia em Petrogrado em 30 de março de 1919, com Pierre Vladimirov como Albrecht.
- Entre aqueles que viram Spessivtseva como Giselle e foram muito inspirados por sua atuação estava Galina Ulanova. Ulanova se tornaria outra grande intérprete de Giselle e quando ela dançou o papel em Londres como parte da primeira vez do Ballet Bolshoi pelo oeste em 1956, ela perguntou a Sir Anton Dolin como sua atuação em Giselle, especialmente no primeiro ato, se comparava para o de Spessivtseva.
- Em 1910, Giselle voltou a Paris após uma ausência de quarenta e dois anos, quando Sergei Diaghilev encenou o renascimento de Petipá para o Ballet Russes. A encenação de Diaghilev inclui revisões coreográficas de Mikhail Fokine e decorações e figurinos de Alexandre Benois. O renascimento de Giselle por Diaghilev estreou em 17 de junho de 1910 no Théâtre National de l’Opéra, com Tamara Karsavina como Giselle e Vaslav Nijinsky como Albrecht.
- Quando Nicholas Sergeyev, o ex-diretor do Ballet Imperial, fugiu da Rússia após a Revolução Russa, ele levou consigo as anotações (registros escritos de coreografia) de muitos ballets, incluindo Giselle. Ele encenou o trabalho pela primeira vez no Reino Unido para a Camargo Society em 1932 com Olga Spessivtseva como Giselle e Anton Dolin como Albrecht. Na produção de 1934, Sergeyev encenou Giselle para o Vic-Wells Ballet (atual Royal Ballet). Para esta produção, Alicia Makova dançou Giselle e Dolin voltou a fazer o papel de Albrecht.
- O English National Ballet apresentou uma versão produzida para a companhia em 1971 por Mary Skeaping, que havia aprendido o ballet como membro da companhia de Anna Pavlova.
- Em 1985, Peter Wright encenou sua versão de Giselle com designs requintados de John Macfarlane. Foi revivido em 1988 com a bailarina francesa Sylvie Guillem como Giselle e Rudolf Nureyev como Albrecht. A versão de Wright de Giselle continua sendo uma das mais importantes do repertório do Royal Ballet. Essa versão é também usada até hoje pelo nosso TMRJ. Mas vamos ver isso mais adiante.
- Algumas outras das produções modernas mais famosas incluem o Birmingham Royal Ballet e o Bayerisches Staatsballett, Yuri Grigorovich para o Bolshoi Ballet e Yvette Chauviré para o La Scala Ballet.
- Em 2019, Alexei Ratmansky encenou uma nova produção de Giselle para o Bolshoi Ballet que se baseia principalmente nas partituras de notação Sergeyev, mas também usa detalhes das partituras de notação de Justamant. A produção de Giselle de Ratmansky estreou em 21 de novembro de 2019 no Teatro Bolshoi em Moscou, com Olga Smirnova como Giselle, Artemy Belyakov como Albrecht, Eric Svolkin como Hilarion e Angelina Vlashinets como Myrtha, Rainha dos Wilis.
4. Pas Seul e Pas de Deux Camponês
O Pas Seul é uma variação famosa de Giselle no primeiro ato, mantida em muitas produções modernas. Esta variação foi composta por Riccardo Drigo em 1887, embora a música seja geralmente creditada erroneamente a Ludwig Minkus, como Adam Lopez descobriu. Foi incluído para Elena Cornalba por sua atuação em Fiametta em 1887 e ela deve ter transferido para o primeiro ato de Giselle quando Petipá reviveu o ballet para ela naquele mesmo ano. Ao contrário de outras peças exclusivas e adicionadas para várias bailarinas antes, o Pas Seul encontrou um lar permanente no repertório do Ballet Imperial e foi interpretada pelas bailarinas que sucederam Cornalba no papel de Giselle. A variação foi introduzida pela primeira vez no oeste por Olga Spessivtseva quando ela se apresentou na Opéra de Paris em 1924. A popularidade do Pas Seul com as bailarinas, no entanto, teve seu custo porque a variação original foi esquecida. Tamara Karsavina foi a última bailarina marcada pelo original, mas, infelizmente, sua atuação como Giselle nunca foi gravada.
O curioso é que descobri recentemente que existe um filme da Barbie em que ela dança o pas seul! E a aparentemente é a mesma coreografia! Como eu não vi o resto do filme, não sei o resto da história e qual o contexto dela dançar Giselle. Quando eu era criança cheguei a ver o Lago e o Quebra-nozes da Barbie. Mas esse das Sapatilhas Mágicas é novidade para mim. Quem souber algo sobre, deixa nos comentários. De qualquer forma, fica aí o registro da Barbie dançando o pas seul! haha
O Pas de Deux Camponês (Pas des paysans) é outra das passagens mais famosas de Giselle e tem uma história interessante. Antes da estreia em 1841 em Paris, uma das bailarinas da Ópera de Paris, Nathalie Fitz-James estava empenhada em ter seu próprio pas em Giselle. Como muitos de seus colegas, Fitz-James era amante de um dos patronos mais influentes da Ópera e seu relacionamento com ele influenciou o arranjo de um novo pas a ser adicionado para ela. No entanto, Adolphe Adam não estava disponível na época para compor mais músicas, então Jean Coralli teve que procurar outro compositor. Sem final, ele arranjou um novo pas deux para Fitz-James com música do compositor alemão Friedrich Burgmüller de sua suíte Souvenirs de Ratisbonne. O novo pas foi mais tarde batizado como Pas des paysans (também conhecido como Pas de deux Camponês), foi executada pela primeira vez por Fitz-James e o bailarino Auguste Mabille e permaneceu em Giselle desde então.
No tempo de Petipá, o Pas de Deux Camponês era interpretado por nomes como Tamara Karsavina, Mikhail Fokine e Vaslav Nijinsky. A coleção Sergeyev inclui pontuações de notação para o pas de deux quando foi executado por Agrippina Vaganova e Mikhail Obukhov. Na maioria das produções modernas, o Pas de Peasant é interpretado por pelo menos seis bailarinos, o que não é seu conceito original nem como foi encenado por Petipá.
5. Curiosidades
1) Giselle foi feito após de seu libretista, Theóphile Gautier, ler um livro escrito por Heinrich Heine, um poeta bastante conhecido por suas poesias líricas. Seu livro, “De l’Allemangne” era sobre uma lenda alemã em que os espíritos das noivas que morreram antes do casamento e atraíram seus noivos para a floresta para então dançarem até a morte. Essa foi a inspiração para o segundo ato do ballet.
Já vimos que o libreto de Giselle foi inicialmente escrito por Theóphile Gautier, que estava tendo dificuldades em dizer como as jovens se transformariam nas Willis. Posteriormente, Jules-Henri Vernoy de Saint-Georges é que vai sugerir a este que as moças deveriam morrer e é isso que tornou o ballet um verdadeiro sucesso.
Gautier leu o conto de Heine e ficou encantado com a cena que falava de elfos de vestidos brancos que estavam com as barras sempre úmidas e de Willis brancas como a neve que valsam impiedosamente. Heine tirou a inspiração para o seu livro de uma lenda eslava de dançarinas noturnas que são conhecidas como Willis, que são donzelas noivas que morreram antes do dia do casamento e não podem repousar em paz em seus túmulos. A paixão delas pela dança é mantida; paixão essa que não puderam realizar em vida. À meia noite elas se levantam e se juntam em bandos pelas estradas, e ai do jovem que as encontrar, pois será obrigado a dançar até cair morto.
Podemos ver então de onde surgiu toda a inspiração para a criação do segundo ato do ballet. Já o primeiro ato, Gautier tirou de um poema de Victor Hugo, chamado “Fantomes”. Nesse poema havia um verso sobre uma linda garota espanhola de 15 anos que adorava dançar. Ela fica muito quente em um baile e morre de frio numa gélida manhã.
2) No libreto original de Gautier, as Willis eram cada uma de um país diferente, e inicialmente Adam compôs músicas para cada uma delas nos seus estilos nacionais. Mas quando o ballet foi se desenvolvendo, essa ideia foi abandonada, mas algumas das composições musicais originais foram retidas. Além da Rainha Myrtha, existem outras duas personagens que são suas assistentes: Zulma e Moyna. Elas três são as solistas do segundo ato. Só que, além do fato de Myrtha ter as suas assistentes, as suas nacionalidades também seriam reveladas. Moyna seria uma odalisca (uma dançarina ou escrava turca) e Zulma seria uma “bayadere” (uma dançarina Hindu, indiana). Além das duas assistentes, haveria no libreto original também uma Willli francesa, que dançaria um minueto, e uma alemã que dançaria uma valsa.
Outra ideia sobre as Willis que foi abandonada é que as Willis seriam atraídas para a festa de algum príncipe pelo desejo de dançar. A Rainha Myrtha tocaria o soalho com sua varinha de condão a fim de contagiar os pés dos bailarinos de insaciável desejo de contradanças, valsas e mazurcas. A chegada de mais gente no salão de festas faria as Willis fugir. Por essa concepção do ballet, Giselle não queria que seu amado dançasse com outras moças, seria surpreendida pela madrugada fria e a pálida Rainha das Willis, invisível a todos os presentes, tocaria com a mão de gelo o seu coração. Acontece que Gautier não ficou totalmente satisfeito com o enredo dessa história e o resto já sabemos.
3) Foi um ballet criado para a bailarina Carlotta Grisi, a primeira bailarina que de fato o dançou, e fez dela um grande sucesso. Mas inúmeras bailarinas de sucesso também já dançaram esse ballet, como Anna Pavlova, Carla Fracci, Margot Fonteyn, Natalia Makarova, Alicia Alonso, Natalia Osipova, Svetlana Zakharova, Marianela Nunez e a nossa Ana Botafogo.
4) Foi o marido de Carlotta Grisi à época do ballet, Jules Perot, quem coreografou os solos de Giselle para a esposa, embora não tenha tido os créditos originais por este fato. As demais coreografias foram de Jean Coralli. Este, além de coreógrafo, dançou o papel de Hilarion na estreia do ballet. Nesta ocasião tivemos Adèle Dumilâtre como Myrtha.
5) Quem dançou pela primeira vez ao lado de Grisi interpretando Albrecht foi Lucien Petipá, o irmão mais velho de Marius Petipá. (Alguns anos depois, como já vimos, eles também vão dançar juntos nos papéis principais de Paquita, ballet em que Lucien vai estrelar um papel de seu próprio nome). Um pouco depois, Carlotta Grisi vai se separar de Perrot e viver um romance com seu partner Lucien Petipá, mas nem por isso sessaram as colaborações profissionais com seu ex-marido.
6) Um fato interessante sobre a passagem de Giselle de geração em geração é que o cenário sofreu modificações que fizeram com que as produções modernas se diferissem bastante das produções do século XIX. Talvez o maior desvio em relação às produções do século XIX seja a apresentação de alguns personagens, embora sempre dependa da produção. Algumas produções retratam Albrecht como enganoso e arrogante, que está apenas brincando com Giselle, enquanto outras o retratam como um coração afetuoso e amoroso, que é genuinamente apaixonado pela camponesa, apesar de seu noivado com Bathilde, outra personagem cujo retrato mudou . Em algumas produções, Bathilde é retratada como fria e cruel, enquanto em outras, ela é gentil e gentil e outra personagem cujo retrato difere é Hilarion; algumas produções o retratam de uma forma um tanto heróica, enquanto em outras, ele é o rival amargamente ciumento de Albrecht.
O retrato dessas personagens nas produções do século XIX é o seguinte – Albrecht é um nobre de bom coração e atencioso, que está perdidamente apaixonado por uma camponesa, apesar de seu noivado e de suas diferenças sociais; seu relacionamento com Giselle é de amor e afeto genuínos, não uma sedução descuidada e egoísta. Bathilde é uma nobre gentil e gentil, que se sente atraída por Giselle e chora pela morte da camponesa. Hilarion é o guarda florestal local que, desde o início, tem ciúme amargo do amor de Albrecht e Giselle e seu ciúme o leva a arruinar a felicidade de Giselle quando ele descobre a verdadeira identidade de Albrecht, mas suas ações acabam na morte dela.
As mudanças feitas nos personagens ocorreram durante o século XX, especialmente na Rússia, onde os papéis dos aristocratas são de vilões e dos camponeses, de heróis; no triângulo amoroso entre Giselle, Albrecht e Hilarion, os papéis dos dois homens foram trocados – Albrecht tornou-se o vilão e Hilarion tornou-se o herói. Conforme descrito por Yuri Slonimsky, essa mudança foi ideologicamente impulsionada pela ideologia soviética que glorificou os camponeses e demonizou uma aristocracia. No entanto, a troca só provou ser ilógica, já que Hilarion foi o único a morrer nas mãos dos Willis, enquanto Albrecht ainda foi perdoado e resgatado.
7) Também houve mudanças significativas em certos momentos da história, sendo as mais distintas a sequência de abertura, a causa da morte de Giselle e o final. A sequência de abertura padrão com o encontro entre Giselle e Albrecht mostra Albrecht batendo na porta de Giselle, após o que ela sai de sua cabana e ele a seduz com seus flertes e declarações de amor. Nas produções do século XIX, porém, quando o ballet começa, Giselle e Albrecht já são um casal; Albrecht bate na porta de Giselle e quando ela sai, ela o abraça. Então ela diz a ele que na noite anterior, ela sonhou com ele se apaixonando por outra mulher e ele a consola, assegurando-a de seu amor. Não é certo quando a cena de amor do primeiro ato foi mudada para o cenário amplamente utilizado hoje, mas parece que foi em algum momento do início do século XX.
8) A causa da morte de Giselle varia nas diferentes produções; em alguns, ela sofre de um coração fraco e quando ela enlouquece, seu coração finalmente falha e ela morre; em outras produções, especialmente na produção de Sir Peter Wright, ela se mata com uma espada de Albrecht, que é a razão pela qual ela está enterrada na floresta em solo não consagrado. No cenário do século XIX, não há suicídio, mas sim uma tentativa de suicídio – Giselle tenta se esfaquear com uma espada de Albrecht, mas não consegue quando Albrecht uma impede e tira uma espada dela. Esta é mais uma mudança marcante nas produções modernas, já que hoje é geralmente Hilarion quem impede Giselle de se esfaquear, embora no libreto original de Gautier tenha sido sua mãe Berthe quem a impediu. Como Alexei Ratmansky explicou, a música para a cena não esquece o suicídio e Giselle morre com o coração partido, o que implica que ela dançou até a morte. A cortina cai sobre todos que cercam seu corpo sem vida e estão de luto por ela, incluindo Albrecht, Berthe, Hilarion e Bathilde. Giselle está enterrada na floresta em vez de um cemitério consagrado porque, como se acreditava na época comumente em que a história se passa, ela estava possuída por um espírito ímpio, que a fez cair na loucura, tornando-o impróprio para ela seja enterrada em um túmulo cristão.
9) Outra mudança interessante é o final. Muitas produções modernas terminam com Giselle desaparecendo ou retornando ao túmulo após se despedir de Albrecht, que fica triste e sozinho. O cenário das produções do século XIX, porém, apresentou um final diferente que algumas produções modernas restauraram. Depois que as Willis são forçadas a desaparecer ao amanhecer, Giselle conforta Albrecht uma última vez e ele a carrega para um monte florido. Quando ela desaparece, Bathilde e sua comitiva chegam em busca de Albrecht e Giselle diz a ele que ele deveria se casar com Bathilde. Albrecht está sofrendo, mas o último desejo de sua amada Giselle é sagrado. Depois que ela se foi, ele pega algumas flores do monte e as beija, dá alguns pequenos passos em direção a Bathilde e os cortesãos e cai em seus braços, com as mãos estendidas para Bathilde, que estende o braço para trás. Esse final é paralelo ao final do primeiro ato, quando os camponeses se aglomeram ao redor do corpo de Giselle. Parece, no entanto, que em 1899 Petipá estava usando um final diferente porque no final registrado nas partituras de Sergeyev de 1899, depois que Giselle desapareceu, Albrecht entrou em colapso e morreu repentinamente e seu corpo foi encontrado por seu escudeiro Wilfred e quatro cortesãos. Este é o final que foi usado na produção de 1930 de Giselle que foi dançada pelo Vic-Wells Ballet e aparentemente também foi usada na produção de Anna Pavlova.
10) Adolphe Adam, seu compositor, fez toda a música de Giselle em APENAS TRÊS SEMANAS! Para isso ele reaproveitou partituras de um outro ballet “Le Pirate” de Philippo Taglioni, o pai de Marie Taglioni. Mas isso nada prejudicou o sucesso de Giselle.
11) Pela primeira vez vamos ter músicas-temas para personagens, os “leitmotif”. O ballet teve músicas-tema para indentificar, por exemplo, Giselle, Albrecht e Hilarion. Relembro que Adolphe Adam vai ser mestre de Léo Delibes, que vai repetir isso em Coppélia.
12) O ballet Giselle teve em 1841 a sua estreia mundial na Ópera de Paris. Apenas 8 anos depois, o ballet foi dançado pela primeira vez aqui no Brasil no dia 23 de julho de 1849. Mas não foi por bailarinos brasileiros. Quem dançou aqui primeiro foram os bailarinos Ana Trabatoni e Eugène Finart, casal de bailarinos italianos que vieram para cá junto à Companhia Lírica Italiana e dançariam no Teatro São Pedro de Alcântara, que hoje conhecemos como Teatro João Caetano aqui no Rio de Janeiro (lembrem-se que ainda não existia o Teatro Municipal do Rio de Janeiro).
13) O ballet só foi dançado por nossos bailarinos numa versão completa em 1953 quando Tatiana Leskova o remontou. Ela própria interpretou Giselle, revezando com Bertha Rosanova e Arthur Ferreira foi Albrecht.
14) Em 1970 houve aqui uma versão grandiosa contando com Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev, estrelas do Royal Ballet, nos papéis principais. Dalal Achcar, sob a direção do Theatro Municipal, empenhou esforços para trazer os 2 brilhantes bailarinos para terras brasileiras e dançarem nos nossos palcos.
15) Ainda falando de Brasil, foi um ballet marcante na carreia de Ana Botafogo, assim como o ballet Coppélia, que já citamos no post deste ballet. Em 1982, Ana Botafogo o dançou pela primeira vez no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Dalal Achcar escolheu a versão de Peter Wright, que foi remontada por Deborah Chapman, com a supervisão do próprio coreógrafo. Essa versão desde então é a dançada aqui, no Royal Ballet e no Stuttgart Ballet. A iluminação também foi feita pelo mesmo profissional do Royal Ballet: Tom MacArthur. Além de Ana Botafogo, o bailarino inglês Desmond Kelly interpretou Albrecht e Graham Bart, Hilarion. Este bailarino e Ana foram casados até o momento em que ele morreu afogado na praia do Leme.
16) Para a foto que eu escolhi para destaque deste post, eu dancei em 2008 no corpo de baile, quando eu tinha 18 anos numa remontagem de Patricia Salgado para a Escola Petite Danse. Foi o primeiro ballet de repertório que eu dancei completo. Mayara Magri encarou Giselle aos 14 anos e Letícia Dias estava no corpo de baile junto comigo. Ambas bailarinas foram promovidas mês passado aos cargos de Primeira Artista e Primeira Bailarina do Royal Ballet. É motivo de muito orgulho ter dançado ao lado delas. Não encontrei fotos da Mayara como Giselle. Mas sou eu lá no fundo a esquerda e a Letícia na fila na minha frente.
17) Nem só versões mais tradicionais têm o ballet Giselle. Em 1984, Arthur Mitchell, primeiro solista afro-americano do New York City Ballet, reformulou a versão tradicional do ballet europeu para o Dance Theater of Harlem, uma companhia de dança que prioriza bailarinos negros. Mitchell criou assim, o que ficou conhecido como o ballet “Giselle Crioulo”, com algumas mudanças no enredo e na coreografia. Seu ballet é ambientado na Lousianna durante a década de 1840 e possui um elenco afro-americano. Durante esse período, o status social dos negros libertos era medido pela distância que a família de uma pessoa era da escravidão. O personagem de Giselle é mantido o mesmo; sua maior alegria é dançar. Albrecht é agora Albert e as Willis são os fantasmas de jovens que adoram dançar e morrem de coração partido. Uma outra versão nada tradicional do ballet Giselle é a de 2016 do English National Ballet, coreografada por Akram Khan. Para esta versão, para a qual Khan encomendou uma nova partitura, o ballet foi reimaginado em um mundo distópico com Giselle como membro de uma comunidade de trabalhadores imigrantes de fábricas de roupas, ou “outcasts”. As Willis no Ato II assumiram a forma dos fantasmas desses operários. O ballet foi aclamado pela crítica.
5. O que a crítica disse sobre o ballet
Giselle alcançou um triunfo extraordinário,
“o maior obtido por um bailado na Ópera depois de La Sylphide, de gloriosa e triunfal memória”.
A música de Adam foi considerada superior à habitualmente usada em ballets, não apenas pelo atrativo e novidade das melodias e pela bem elaborada fuga, mas principalmente pela estreita relação entre a música e as várias situações do tema. As obcecantes melodias, a suave tristeza e as dramáticas qualidades da partitura não perderam o interesse mesmo nesta época de requintadas exigências, conforme provou a reedição do Vic-Wells Ballet.
Os cenários de Ciceri, famoso por suas reproduções de paisagens, foram considerados obras-primas de perspectiva e minúcia.
A coreografia de Coralli poderá ser julgada em certo grau pelas várias representações vistas em Londres. É a um só tempo dramática e poética; sendo os principais episódios a angustiosa cena da loucura e a morte de Giselle no final do primeiro ato e a maior parte do segundo ato, que contém muitos conjuntos encantadores.
Entretanto, havia dúvidas se as danças eram ou não de autoria de Coralli, conforme as notícias abaixo:
“Fora os autores citados no programa… há um quinto colaborador não mencionado – Perrot, marido e professor de Carlotta, que fez o arranjo de todos os pas nas cenas em que sua mulher toma parte. Devemos acrescentar, por amor à equidade, e já que os cartazes não fazem menção disso, que M. Perrot arranjou pessoalmente todos os pas dançados por sua esposa, vale dizer, é ele o autor de grande parte do novo bailado”.
Hoje já sabemos que o ballet foi coreografado por ambos: Coralli ficou responsável pelas coreografias do corpo de baile, e Perrot, pelos solos de Giselle.
Sobre a dança de Grisi, Gautier disse que
“Carlotta dançou com uma perfeição, uma leveza, um arrojo, e uma sedução tão casta e refinada que se colocou em primeira plaina, entre Elssler e Taglioni. Em relação à pantomima excedeu a todas as expectativas; nem um só gesto convencional, nem um movimento falso; foi a naturalidade e a expontaneidade personificadas”.
O crítico do Moniteur des Théâtres é ainda mais entusiasta, pois intitula Grisi a verdadeira Rainha da Festa.
“Que encantadora bailarina, e como dança!… Imaginem que do princípio ao fim de Giselle mantém-se continuamente en l’air ou sur les pointes. No primeiro ato corre, voa, salta pelo palco como uma gazela amorosa, e isso a tal ponto que o socego do túmulo não parece demasiado profundo após tantas carreiras e tamanho dispêndio de esforços. E isto ainda não é nada comparado com o que o segundo ato lhe reserva. Aí, além de dançar tanto quanto até então, ela tem de ser mil vezes mais etérea e intangível, por assim dizer, pois que é uma sombra. Ela não tem solo onde se firmar; nenhum ponto de apoio; corta os ares como uma andorinha, pousa sobre os caniços e pendura-se nos topos das árvores, – o que é literalmente verdadeiro -, a fim de atirar flores para o ente amado. Recordam-se das rápidas e súbitas aparições de La Sylphide? Giselle é uma Sylphide que não tem um só momento de descanso.”
“Certamente a Sta. Taglioni encontrou uma sucessora… Sem dúvida Carlotta Grisi não possui tantos recursos técnicos quanto Taglioni, nem igual soma de experiência cênica, o que é naturalíssimo, pois Carlotta tem apenas vinte anos… mas os dotes da Sta. Taglioni, seus mais preciosos dotes – precisão de movimentos, porte gracioso, leveza e flexibilidade – são possuídos pela Grisi no mais alto grau. E além de tudo isso é dotada de indefinível dom de provocação, uma recatada provacação, todavia, se assim posso exprimir-me, como a que contribui para o triunfo de Fanny Elssler. Sim; por minha parte não hesito em afirmar que as muito diversas qualidades da Taglioni e de Fanny Elssler se acham combinadas em Carlotta Grisi”.
E esse foi todo o conteúdo que eu tinha para escrever sobre esse ballet.
Vejo vocês no próximo post.
Fontes Bibliográficas:
- O Livro do Ballet, um guia dos principais bailados dos séculos XIX e XX – Cyril W. Beaumont, Tradução de João Henrique Chaves Lopes – Editora Globo
- Ana Botafogo, Na Magia do Palco – Suzana Braga
- História da Dança – Maribel Portinari
- Ballet – The Definitive Ilustrated Story – Viviana Durante
- https://petipasociety.com