Hoje vamos falar sobre o meu ballet favorito da vida! Don Quixote é um ballet espanhol, cuja versão mais famosa é a de Petipá (outros coreógrafos também fizeram suas próprias versões antes dele dessa mesma história. Mas vou escrever sobre isso mais adiante). Ele se baseia num capítulo do romance de Miguel de Cervantes e teve a sua estreia mundial no dia 26 de dezembro de 1869 no Teatro Bolshoi. É um ballet romântico em 3 atos, a depender da versão. Na sua primeira apresentação, o casal principal foi dançados por Anna Sobeshchanskaya e Sergei Sokolov.
Vamos falar sobre: o enredo, o contexto da criação, as versões, as curiosidades (inclusive envolvendo esse ballet aqui no Brasil) e o que a crítica disse sobre o ballet. Vamos então nos aprofundar nesse ballet que eu amo tanto.
1. Enredo
Há versões em que o ballet se inicia com um prólogo (vocês vão encontrar essa história contada de maneiras diferentes, inclusive no webstories que eu fiz sobre esse ballet, pois muitos encurtaram a versão de Petipá). O Bacharel Sansão Carrasco é visto cobrindo uma estante de livros com papel de forrar parede, enquanto Antonina mete num aparador algumas armaduras enferrujadas e um elmo de papelão. Entra Don Quixote lendo um livro. Ele se dirige à estante e, não podendo encontrá-la, acredita que foi roubada por maus espíritos. Acomoda-se então numa poltrona e continua a leitura. Ele se delicia com as histórias de bravos cavaleiros e fabulosos gigantes, mas, gradualmente, a cabeça pende e adormece para sonhar com suas românticas aventuras.
Cai a noite e pela janela do escritório pula seu criado, Sancho Pança, seguido por várias mulheres zangadas, das quais furtara um frango. Don Quixote acorda e, mandando embora as outras mulheres, diz a Sancho que está decidido partir em busca de aventuras como cavaleiro andante. Mostra-lhe o elmo de papelão feito por ele e que a um golpe de sua espada se torna massa informe.
Antonina sugere utilizar uma bacia, que daria um esplêndido capacete. Don Quixote concorda, entusiasmado, e, colocand0-a na cabeça, manda que Sancho lhe traga sua armadura, a espada e a lança.
O primeiro ato começa na praça do mercado em Barcelona. Kitri, a filha de um estalajadeiro, escapole de casa para se encontrar com o namorado, o barbeiro Basílio. Lourenço, pai de Kitri, vê o casal chegando e manda Basílio embora. Kitri começa a chorar.
Chega então um nobre, Gamache, que também é apaixonado por Kitri. Ele se dirige a Lourenço e lhe pede a mão de Kitri em casamento. Lourenço aceita com satisfação e o convida para casa.
Na praça o povo começa a dançar e alguns toureiros tentam raptar as moças que mais lhes agradam. Porém, os parentes e amantes vão ajudá-las. Nesse momento chega Don Quixote montado em seu cavalo e Sancho Pança, em um burro. Este recebe uma ordem de seu amo e toca uma trompa.
Lourenço se lança da hospedaria e Don Quixote, tomando-o pelo senhor de um famoso castelo, se desmonta e, caindo de joelhos, pede-lhe que lhe permita servi-lo. Lourenço convida o cavaleiro para se sentar a seu balcão. Sancho permanece na praça, onde se vê cercado pelas moças que o convencem a participar do jogo da cabra-cega.
Alguns rapazes trazem depois uma manta sobre a qual deitam Sancho e começam a atirá-lo pelos ares. Don Quixote corre em seu auxílio e acaba por livrá-lo do brinquedo. Observando Kitri, o cavaleiro declara que é a sua Dulcinéia, reduzida àquela baixa condição pelos espíritos malignos. Os camponeses se reunem na praça e as danças recomeçam. Kitri e Basílio aproveitam a oportunidade e fogem, mas o cavaleiro os vê, ordena que lhe tragam seu cavalo e parte em perseguição deles.
A primeira cena do segundo ato é no interior de uma estalagem. Kitri entra em companhia de Basílio e os dois se juntam aos que estão dançando. No auge da animação chegam Lourenço e Gamache. Lourenço, vendo a filha, resolve abençoar a sua união com Gamache. O barbeiro se sente muito magoado e, censurando a infidelidade de Kitri, tira uma espada e enfia no próprio corpo (mas isso era tudo fingimento). Quando está prestes a morrer, pede a Lourenço que o case com Kitri, mas Lourenço e Gamache recusam.
Don Quixote se aproxima de Gamache e desafia-o por ter recusado a satisfazer o desejo de um moribundo. O nobre se nega a lutar e os folgazões o põem para fora da hospedaria. Lourenço então resolve unir Basílio e Kitri. Nesse instante o rapaz arranca a espada e diz que estava apenas pregando uma peça.
A segunda cena do segundo ato se passa nos moinhos de vento da aldeia, em que é possível ver um acampamento cigano e um teatro de fantoches. Um palhaço passeia com Graciosa, a filha do chefe dos ciganos. Um destes vem avisar ao chefe da aproximação de Don Quixote. O cigano planeja uma emboscada em benefício próprio e, pondo um manto e uma coroa, senta-se como se fora um rei no trono.
Don Quixote, entusiasmado com a vitória, rende graças aos céus. Ao ver a lua, toma-a por Dulcinéia e tenta agarrá-la. Aproximando-se dos moinhos de vento, perde a lua de vista e julga que os magos ocultaram a sua amada. Dessa forma, de lança em riste, ataca as pás dos moinhos, pensando serem gigantes. Mas, ai do cavaleiro, que é colhido por uma das asas e atirado aos ares, caindo inconsciente aos pés do Sancho.
A primeira cena do terceiro ato se passa na floresta. Através das árvores aparece o escudeiro conduzindo o seu burro, sobre o qual vem montado o cavaleiro ferido. O criado ajuda o amo a saltar e o coloca sobre a relva a fim de que possa descansar. Depois amarra o animal e vai dormir. Don Quixote também tenta conciliar o sono, porém é importunado por sonhos fantásticos.
A segunda cena do terceiro ato é no Jardim de Dulcinéia. Surgem fadas rodeadas de gnomos (as dríades). Em seguida desfila um bando de pavorosos monstros, o último dos quais é uma aranha gigantesca que tece sua teia. Don Quixote ataca-a e a separa ao meio com sua espada. No mesmo instante a teia desaparece e deixa ver um belo jardim a cuja entrada se acha Dulcinéia cercada de lindas moças. Subitamente tudo se desvanece.
A terceira cena do terceiro ato ocorre em terras reservadas à caça nos domínios do Duque. Ouvem-se as trompas de caça e, através da clareira, aparece o duque em meio de numeroso séquito. Don Quixote cai de joelhos em frente ao Gamache e este convida o cavaleiro a acompanhá-lo até o seu castelo.
O quarto ato se passa no castelo ducal. É dada uma magnífica festa em horna do Don Quixote. De repente o Cavaleiro da Branca Lua desafia-o para um duelo, do qual Don Quixote resulta vencido. O cavaleiro vitorioso não passa do bacharel Sansão Carrasco que força Don Quixote a prestar um juramento pelo qual se obriga a, durante um ano inteiro, não desembainhar a espada. O desconsolado Cavaleiro, fiel a sua palavra, despoja-se dos apetrechos guerreiros e, seguido de Sancho, toma o caminho de casa.
2. Contexto da Criação
Vamos ver mais adiante que a versão de Petipá não foi a primeira versão de Don Quixote para o ballet, mas a mais famosa delas. Sob encomenda, Petipá junto com Minkus fizeram o ballet para o Teatro Bolshoi, que estrearia dia 26 de dezembro de 1869.
Este ballet foi o primeiro e é o mais famoso dos grandes ballets de Petipá com tema espanhol. Antes de Don Quixote, Petipá havia criado outros ballets curtos com tema espanhol, mas este foi o primeiro de seus grandes ballets que incorporava seu conhecimento da dança e da cultura espanhola, que obteve durante os três anos que passou na Espanha.
Don Quixote de Petipá foi originalmente criado para o Teatro Bolshoi em quatro atos e oito cenas e marcou o início da colaboração entre Petipa e Ludiwg Minkus. Mas, originalmente, Petipá havia planejado que Cesare Pugni fosse o compositor do ballet, mas Pugni estava enfrentando alcoolismo e depressão e estava atrasando as entregas das músicas. Petipá teve que buscar outro compositor para o ballet e então chamou Minkus para tal função. Vamos ver ainda que a dupla Petipá e Minkus vai ainda produzir outros ballets de grande sucesso.
3. Versões
- A versão original do ballet que estamos falando aqui conta com coreografia de Marius Petipá, música de Minkus, Anna Sobeshchanskaya no papel de Kitri, Sergei Sokolov no de Basílio, Pelagaya Karpakova foi a Dulcineia, Dmitri Kuznetsov interpretou Gamache, Wilhelm Vanner fez Don Quixote e Vassily Geltser o Sancho Pança. Esta versão estreou 6 de dezembro de 1869 no Teatro Bolshoi com quatro atos e oito cenas.
- Posteriormente, o ballet foi ampliado para 5 atos e 11 cenas e subiu ao palco do Mariinsky em 9 de novembro de 1871. Na ocasião os papéis principais foram dados a Alexandra Vergina (Kitri), Stukolkine (Don Quixote), Goltz (Gamache), Ivanov (Basílio) e Bogdanov (Lourenço). Foi a partir desta versão que os papéis de Kitri e Dulcineia passaram a ser dançados pela mesma bailarina para tornar mais convincente a confusão pelas duas mulheres por Don Quixote.
- Em 1902 a coreografia foi grandemente alterada por Gorsky e ficou com 3 atos e 7 cenas. Originalmente essa versão de Gorsky foi encena pela primeira vez no Teatro Bolshoi em Moscou, no dia 19 de dezembro de 1900. Este renascimento, além de enxugar o ballet, a partitura de Minkus foi aparada e complementada com novas músicas do compositor Anton Simon. Em 1902, o Diretor dos Teatros Imperiais de São Petersburgo, Coronel Vladimir Telyakovsky, convidou Gorsky para montar seu renascimento de Don Quixote para o Ballet Imperial. Mais mudanças foram adicionadas ao renascimento, especialmente a suplementação de variações de outros ballets que se tornaram variações tradicionais de Dom Quixote. Embora tenha sido bem recebido em Moscou, o renascimento de Gorsky chocou os amantes de ballet de São Petersburgo com suas cenas de multidão e decoração realistas e eles afirmaram que o renascimento foi uma mutilação da obra-prima original de Petipá por um de seus ex-alunos. Inclusive Petipá ficou muito incomodado com tantas mudanças feitas por Gorsky, mas fato é que a versão deste ficou famosa mundialmente.
- Após sua estreia em São Petersburgo, o renascimento de Don Quixote por Gorsky não durou muito tempo em São Petersburgo, mas, no entanto, não foi esquecido e acabou reaparecendo em São Petersburgo de 1910, encontrando um lugar permanente no repertório .
- Hoje, Don Quixote é apresentado em várias produções de diferentes companhias em todo o mundo, todas decorrentes do renascimento de Gorsky. O que é dançado hoje como Don Quixote é muito diferente da produção original de Petipá de 1869 quanto de seu renascimento de 1871. O ballet na Rússia, bem depois da revolução de 1917, com a partitura de Minkus passou por uma série de mudanças ao longo do caminho. Em 1923, o coreógrafo soviético Fyodor Lopukhov encenou uma nova versão do ballet para o antigo Ballet Imperial em Leningrado que incluiu um novo “Fandango” do compositor tcheco Eduard Nápravník.
- A primeira produção de Don Quixote de Minkus no oeste foi encenada por Anna Pavlova em 1924, quando ela dançou em uma versão encurtada de dois atos do renascimento de Gorsky na Royal Opera House em Londres.
- Rostislav Zakharov encenou outra nova versão de Don Quixote para o Teatro Bolshoi em Moscou em 1940, que incluiu novas músicas de Vassily Soloviev-Sedoy. Essas adições atribuídas na produção de Leningrado.
- Em 1946, Pyotr Gusev encenou outra versão de Don Quixote no Teatro Kirov/Mariinsky, com o libreto original modificado por Yuri Slonimsky, novas danças de Nina Anisimova para a cena da taverna e decoração restaurada a partir dos desenhos de 1902 originais preparados para São Petersburgo de Gorsky encenação. Esta produção ainda é dançada hoje pelo Ballet Mariinsky.
- O famoso Grand Pas de Deux da cena final do ballet foi encenado no Ocidente já na década de 1940 pelo Ballet Russe de Monte-Carlo.
- A primeira produção completa montada fora da Rússia foi uma encenação completamente nova, produzida e coreografada por Ninette de Valois para o Royal Ballet em 1950.
O primeiro renascimento completo da produção original russa a ser encenado no Ocidente foi pelo Ballet Rambert em 1962.
- Em 1966 Rudolf Nureyev encenou sua versão para o Ballet da Ópera Estatal de Viena , com a partitura de Minkus adaptada por John Lanchbery . Em 1973, Nureyev filmou sua versão com o Australian Ballet e Robert Helpmann como Don Quixote.
- Mikhail Baryshnikov montou sua própria versão em 1980 para o American Ballet Theatre, uma produção que foi encenada por muitas companhias, incluindo o Royal Ballet, embora a companhia mais tarde tenha encenado a versão de Nureyev e, mais recentemente, a de Carlos Acosta.
- O coreógrafo George Balanchine criou uma versão moderna em 1965 para o New York City Ballet com a música de Nicolas Nabokov, com o próprio Balanchine aparecendo como Don Quixote e Suzanne Farrell como Dulcinea e Francisco Moncion como Merlin. Esta produção não teve nada a ver com a versão Minkus. Só foi apresentado até meados da década de 1970 e depois retirado do repertório da companhia. Em 2005 foi reconstruída por Farrell para a companhia e continua a ser apresentada.
- Apresentado pela primeira vez pelo San Francisco Ballet em 2003 sob a encenação de Helgi Tómasson e do então bailarino principal Yuri Possokhov, Don Quixote foi recentemente revivido pelo SFB. Possokhov passou sua juventude dançando com o Bolshoi Ballet, experiência que proporcionou insights e detalhes únicos que foram incorporados à produção.
- Outra versão recente foi criada para o Royal Ballet em 2013 tem coreografia de Carlos Acosta e a partitura de Minkus foi adaptada por Martin Yates , os cenários e figurinos são de Tim Hatley. Essa versão conta com o próprio Acosta e a divina Marianela Núñez nos papéis principais.
- Em 1987, o Northern Ballet (Reino Unido) contratou o coreógrafo Michael Pink para criar uma versão em três atos com o diretor artístico Christopher Gableno papel do Don Quixote. O enredo foi reformulado para incluir mais aventuras de Don Quixote e Sancho Pança. A história de Kitri e Basilio, que tradicionalmente percorre a maioria das versões do ballet completo, é contada no primeiro ato da versão de Pink. O segundo ato segue Don Quixote e Sancho Pança quando encontram um bando de ciganos, são pegos em uma tempestade de areia, resultando em Don Quixote sendo nocauteado e seu sonho com Dulcinea. O Terceiro Ato contou o encontro da Duquesa e das damas barbudas para o qual Don Quixote, vendado, imagina que monta um cavalo voador para matar o demônio que amaldiçoou as damas. Toureiros e suas damas divertem a corte, isso inclui o tradicional grand pas de deux. O ballet termina após a chegada do cavaleiro dos espelhos. Michael Pink reencenou o trabalho para o Milwaukee Ballet em 2005 com mudanças adicionais no Prólogo e no Terceiro Ato. Esta produção foi apresentada novamente em 2014.
4. Curiosidades
1) O ballet Don Quixote se baseia no famoso romance de Cervantes. Este tema não era nada novo em ballets, pois outros coreógrafos já o fizeram anteriormente. Franz Hilverding adaptou os dois capítulos em que o ballet se baseia pela primeira vez em 1740 em Viena; Jean-Georges Noverre apresentara um Don Quixote em Viena por volta de 1768 para a música de Josef Starzer; Milon o levou à Ópera de Paris no dia 18 de janeiro de 1801; Charles Didelot encenou uma versão de dois atos em São Petersburgo para o Ballet Imperial em 1808; James Harvey D’Egville fez uma versão em 1809 no Teatro de Sua Majestade; Paul Taglioni (o irmão de Marie Taglioni) apresentou seu Don Quixote em Berlin Court Opera Ballet em 1839; e seu tio, Salvatore Taglioni montou uma produção no Teatro Regio em Turim , Itália, em 1843. Todas as versões serviram de pretexto para a exibição das danças espanholas.
2) Apesar de todo o sucesso da obra, os ensaios não correram tranquilos. Petipá tinha fama de autoritário e de pessoa difícil de trabalhar, tendo vários atritos com os colaboradores. Um fato que tumultuou o andamento dos ensaios do ballet foi que Petipá e Mariia Surovshtchikova se divorciaram no ano da estreia de Don Quixote. Há quem diga que ela foi preterida por outra estrela para o papel de Kitri, havendo também que ela se recusou a dançá-lo por não acreditar no ballet.
3) Vimos que originalmente, Petipá havia planejado que Cesare Pugni fosse o compositor do ballet, mas até então, Pugni havia caído em tempos difíceis devido ao seu alcoolismo e depressão graves. Sua colaboração com Petipá estava naquele ponto em grande declínio, pois ele se tornou ainda menos confiável, então, no final, Petipá teve que procurar em outro lugar um compositor para seu novo ballet. Ele se voltou para Minkus, que ele havia notado pela primeira vez através da colaboração do compositor com Arthur Saint-Léon. A partitura de Minkus para Don Quixote certamente contém melodias com temas espanhóis, mas ele nunca se desviou de manter a música como um clássico”musique dansante”, completa com polcas, valsas vienenses e afins.
4) Vimos que o ballet Don Quixote que mais conhecemos hoje é resultado de Petipá como coreógrafo e Minkus como compositor. Embora alguns críticos considerem a partitura de Minkus um trabalho próximo do vulgar, ela é sim um dos grandes responsáveis pelo sucesso do ballet. Tanto é que a dupla Petipá-Minkus se uniu para no mínimo mais 9 ballets, dentre eles estão: La Bayadere, Grand Pas, a versão de Paquita de Petipá.
5) A versão de Petipá da obra estreou em 1869 e contava com 4 atos e 8 cenas. O ballet foi ampliado para 5 atos e 11 cenas e subiu ao palco do Mariinsky em 9 de novembro de 1871, quando os papéis principais cabiam a Alexandra Vergina (Kitri), Stukolkine (Don Quixote), Goltz (Gamache), Ivanov (Basílio) e Bogdanov (Lourenço). Em 1902 a coreografia foi grandemente alterada por Gorsky e ficou com 3 atos e 7 cenas. Pavlova adicionou ao repertório da sua companhia uma nova versão condensada que foi bem recebida.
6) Na versão original de 1869 as personagens de Kitri e Dulcinéia eram interpretadas por bailarinas diferentes. Apenas na de 1871 citada acima é que passou a ser um duplo papel, dançado pela mesma bailarina, tornando convincente a confusão entre as duas personagens pelo Don Quixote.
7) Sabe-se que a coreografia de Petipá para Don Quixote foi vítima de uma galáxia de revisões e alterações. Ainda não se sabe se alguma de suas coreografias sobreviveu às muitas revisões soviéticas do ballet, embora seja altamente provável que a coreografia de Petipá tenha se perdido. Apenas uma passagem de sua coreografia parece ter sobrevivido, pois há uma variação que foi anotada no método de notação Stepanov e faz parte da Coleção Sergeyev. É uma variação para Kitri, notada quando executada por Vera Trefilova.
8) Não foram apenas os passos coreográficos de Petipa que foram fortemente revistos e alterados. As produções soviéticas apresentavam um estilo coreográfico que muitos parecem pensar que é o espanhol autêntico e esse mesmo estilo foi mantido nas produções modernas dos séculos XX e XXI. Este estilo aparentemente espanhol, no entanto, não é um estilo de dança espanhol real ou autêntico, mas é claramente o que os coreógrafos soviéticos pensavam ser espanhol. Por exemplo, na entrada do Ato 1 de Kitri, ela executa um passo em que bate com seu leque no chão. Esse tipo de movimento, no entanto, não é encontrado em nenhum lugar da dança tradicional espanhola pela simples razão de que, se uma mulher batesse seu leque no chão, o leque quebraria. Como resultado, o que é apresentado hoje em Don Quixote é uma imagem muito estereotipada da Espanha e suas danças nacionais, o que pode dar uma impressão falsa de Petipá. Isso pode levar o público a pensar que ele sabia muito pouco sobre a dança espanhola, quando na verdade ele tinha um conhecimento muito bom do assunto. Inclusive o próprio Petipá dizia que sabia tocar as castanholas tão bem quanto os dançarinos de Andaluzia.
9) Outra mudança significativa nesta versão de 1871 foi que a cena cômica do suicídio simulado de Basilio foi transformada em uma cena mais dramática na qual Kitri ameaça se matar em vez de se casar com Gamache. Essa cena também foi transferida do terceiro ato para o segundo ato e aconteceu antes da cena do Moinho de Vento, e não depois. Um novo quinto ato foi adicionado com novos personagens, o duque e a duquesa, e foi no castelo deles que o ato final ocorreu, não na taverna da produção de 1869. Finalmente, o renascimento de 1871 terminou com um novo epílogo em que Don Quixote, triste e quebrado, voltou para casa para morrer, provando que esta nova produção estava muito longe da produção original de 1869. Enquanto a produção original de Moscou foi uma comédia comovente, o subsequente renascimento de São Petersburgo foi um drama sério.
10) Don Quixote estreou no Teatro Bolshoi em Moscou, onde o coreógrafo Petipá estava radicado, dirigindo há anos a companhia. O Mariinsky só incorporou o ballet ao seu repertório em novembro de 1871, ano em que Minkus saiu do Bolshoi e assumiu o posto de compositor oficial do Mariinsky.
11) Apesar da fama da versão de Petipá de Don Quixote, o reavivamento de Gorsky de 1902 é que vai servir de base para as produções mais modernas do ballet. Mas o próprio Petipá não gostou muito desta versão, entoando da plateia: “Alguém vai dizer a esse jovem que ainda não estou morto?!”
12) Foi Gorsky quem adicionou essas variações à cena de O Sonho e nenhuma delas foi composta por Minkus:
- Variação da Rainha das Dríades – esta variação é musicada foi composta por Anton Simon e foi adicionada ao renascimento de Gorsky em 1900 como uma variação para um novo personagem, a Rainha das Dríades, pois foi Gorsky quem criou o personagem. Essa variação às vezes é usada como uma alternativa para a variação feminina no chamado Le Corsaire Pas de deux.
- Variação de Amour (que conhecemos como Cupido) – esta variação foi composta pelo compositor Barmin para a performance de Varvara Nikitina em Paquita por volta de 1885. É por isso que esta variação é tradicionalmente dançada hoje na Paquita Grand Pas Classique. Para seu renascimento de 1902, Gorsky interpolou essa variação em Don Quixote como uma variação para Amour, onde desde então foi mantida em produções modernas.
- Variação de Dulcinéia – essa variação foi composta por Riccardo Drigo que foi adicionada por uma performance de Elena Cornalba para a composição The Vestal em 1888. Posteriormente Gorsky acrescentou à sua versão de Don Quixote de 1902 para Matilda Kschessinskaya dançá-la.
13) Há quem diga também que uma das mudanças feitas por Gorsky foi o Grand Pas dos toureiros, mas essa afirmação é falsa, pois foi encontrada uma partitura dessa dança em 1882, indicando que ela já existia na versão de Petipá.
14) A famosa variação do leque de Kitri no Grand Pas de deux tem uma história bastante misteriosa. De todas as partituras de ballet que ainda existem hoje, a partitura de Don Quixote tem uma das histórias mais complicadas. Quase desde o início, a partitura foi publicada em edições muito negligentes, aumentando ainda mais a confusão de muitos historiadores. Por muitos anos, acreditou-se amplamente que a variação do leque, intitulada “L’éventails”, foi composta por Riccardo Drigo para a performance de Matilda Kschessinskaya como Kitri no revival de Gorsky em 1902, assim como ele compôs a famosa Variação de Dulcinea para Kschessinskaya . No entanto, esse não é o caso, afinal.
A música para esta variação contém estranhas semelhanças com uma variação de harpa composta por Minkus para “Noite e Dia” que foi criada para a gala comemorativa da coroação do czar Alexandre III. A variação de harpa em questão é a Variação da Rainha do Dia, então parece que foi de fato Minkus quem compôs a variação “leque”. Segundo Yuri Burlaka, a variação não foi composta para Don Quixote, mas para “Roxana, a Beleza de Montenegro.”
Como essa variação acabou em Don Quixote é incerto. É possível que tenha sido Gorsky quem a interpolou para sua produção de 1902, onde se diz ter sido dançada pela primeira vez por Kschessinskaya no Grand Pas de deux (também conhecido como “pas de deux do casamento”) e permaneceu lá desde então como a variação tradicional para Kitri.
15) Há uma outra grande diferença entre o Don Quixote de Petipá e as produções modernas está no seu libreto. O cenário de Petipá se concentrou principalmente em Don Quixote, o personagem-título e foi um pouco fiel a alguns momentos do romance de Cervantes. Hoje, no entanto, o foco principal do cenário foi deslocado para Kitri e Basílio, com seu pas de deux do casamento, sendo o principal destaque do ballet. No entanto, de acordo com o cenário de Petipá, Kitri e Basílio são personagens coadjuvantes e sua história é alocada em apenas dois atos, o que se deve principalmente ao fato de aparecer em apenas um capítulo do romance.
16) Don Quixote é um dos ballets em que comumente se usa cavalos de verdade nas companhias e este fato nem sempre faz correr tudo bem. Quando Don Quixote foi apresentado em São Petersburgo, em 1875, Sancho Pança se viu obrigado a caminhar a pé, pois foi impossível encontrar um burro. Os cavalos alugados em Londres para os espetáculos da Companhia Pavlova eram, em geral muito bem nutridos para o papel e tinham que ser apropriadamente caracterizados. Isso resultou em muitas vezes a Sociedade Protetora dos Animais comparecer aos espetáculos para investigações.
17) A primeira produção de Don Quixote de Minkus no oeste foi encenada por Anna Pavlova em 1924, quando ela dançou em uma abreviação de dois atos do renascimento de Gorsky na Royal Opera House em Londres.
18) A primeira versão que vimos este ballet aqui no Rio de Janeiro foi essa versão em 2 atos e prólogo. Ela foi aqui dançada no dia 26 de julho de 1928 com Anna Pavlova como Kitri, Domoslawski como Don Quixote e Markovski como Sancho Pança.
19) Já a primeira versão completa que vimos desse ballet aqui no Brasil no TMRJ ficou a cargo de outra Ana. Ana Botafogo estreou Kitri no dia 07 de setembro de 1982. Nesta data Fernando Bujones foi Basílio; Desmond Doyle; Don Quixote, Dennis Gray, Sancho Pança; Alain Lerroy, Gamache. Esta versão foi coreografada por Dalal Achcar, encaixando a coreografia para Ana. Este também foi o primeiro ballet em que Ana Botafogo fez seus primeiros 32 fouettés no palco.
20) A bailarina russa diva dos saltos Natalia Osipova só fazia parte do corpo de baile do Bolshoi Ballet há um ano quando estreou como Kitri em Don Quixote em 2005. O papel lançou sua carreira como solista, ganhando mais elogios da crítica por sua vitalidade e energia durante a turnê do Bolshoi em Londres em 2006. Ela já apareceu como artista convidada em companhias de todo o mundo e é Primeira Bailarina do Royal Ballet, onde ingressou em 2013.
5. O que a crítica disse sobre o ballet
Um crítico comentando a primeira apresentação em São Petersburgo de 1871 declarou que Stukolkine esteve excelente como Don Quixote, mas que o papel de Kitri ultrapassou as forças de Alexandra Vergina, embora tivesse tido um belo êxito com seus doble tours no “Grand Pas d’Adage”. Mostrou-se muito elegante e faceira no “Pas de l’Eventail”, e numa dança com um ramalhete. Radina I esteve brilhante numa “Chica”, Kshesinksy e Tshislova executaram bem uma dança mexicana, enquanto que Gerdt e Prikhunova alcançaram um triunfo num “pas de demi-caractere”.
Fontes Bibliográficas:
- O Livro do Ballet, um guia dos principais bailados dos séculos XIX e XX – Cyril W. Beaumont, Tradução de João Henrique Chaves Lopes – Editora Globo
- https://petipasociety.com/
- Wikipedia
- Livro: Ana Botafogo Na Magia do Palco por Suzana Braga
- Livro: Ballet – The Definitive Illustrated Story – Viviana Durante